segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Av. Liberdade #5


Tantas vezes eu pensei estar perto de alguém, mas é ai que eu descubro meu lado mais sombrio. O lado estúpido que não acredita em dias lindos de verão, que não sente borboletas no estômago.

Lembro das palavras que machucam, das mulheres que deitaram em minha cama, das palavras repletas de álcool e nicotina que sempre escapam e mancham a essência de todas as relações.

Assim que eu cheguei à Avenida Liberdade, no fim do inverno, seis ou sete anos atrás, subi as escadas do velho prédio caixão carregando uns poucos sonhos, papel, cigarros e duas garrafas de bebidas, pude sentir o gosto amargo da solidão. Sentado a observar, através da janela semi-cerrada, as pessoas desfilando em casacos pesados. Acendi meu primeiro cigarro na casa nova e criei meu novo vício.

Nas primeiras semanas, aprendi como funcionava minha nova casa e seus arredores. Gostava de caminhar pela manhã – com um copo de café forte, uns cigarros amassados no bolso e um bom livro ou umas folhas de rascunho – por entre túmulos. Sentava num dos bancos verdes, de bronze, diante de um pequeno mausoléu de mármore branco da família Von Himmel, devem ser alemães. Via a neve derretendo com o sol do que seria a vindoura primavera.

Ficava olhando o branco desaparecer e revelar, rostos de anjos a chorar lágrimas de neve derretida, memórias de famílias inteiras consumidas por amores, rancores e pelo tempo, o tempo é inexorável, invencível.

E os dias foram passando e as lembranças do tempo e das lágrimas de neve se transformavam em flores, o Sol nascia cada vez mais cedo, e as noites estreladas permitiam longos passeios até a praça. A praça era meio caminho da Avenida Liberdade, a mesma distância do presídio e do cemitério. Ali, naquela praça quase abandonada que conheci Anatole, um mendigo, um homem de cultura rara e inteligência brilhante, que lia os originais de Kafka – seu tesouro – e conversava horas e mais horas sobre tudo.

Anatole perdeu seus pais ainda criança para um dos regimes militares da América do Sul, passou de país em país até chegar a Avenida Liberdade, já tinha sido jornalista, vendedor, funcionário público. Tinha sido casado, teve duas filhas, mas nunca contou o que aconteceu com elas. Era como eu, adorava as vicissitudes da realidade, admirava seu estado, era feliz.

Feliz de uma forma pura, desapegada valores judaico-cristãos. Talvez fosse louco, mas são eles os que encontram a verdadeira felicidade que só existe num mundo onde tudo é modelável.

Dizia amar aquela Avenida, porque começava onde os generais encarceraram seus pais e terminava onde queria ver aqueles mesmos generais. Vivia com muito pouco, mas esse pouco em suas mãos virava arte, palavras e imagens tão sinceras que o levaram a morte. Foi na época onde Liberdade era apenas um sonho distante, que uns poucos, ditos loucos, alimentavam. Passei meses sem ver Anatole, sem notícias, pensei nas palavras e nos versos, extremados, revolucionários. Temos muitas estórias para contar, muitas coisas em comum.

sábado, 9 de fevereiro de 2008

à Senhorita

Sorriso delicado, delicadeza à flor da pele.
Alva pele, alva como a neve.
Um sorriso simpático, conversa agradável.
Tudo em uma fila sem graça,
onde manobristas são assuntos
e um sorriso diz tudo que pode se querer saber sobre alguém.
Palavras perdidas, em meio ao acaso,
palavras que não saberia repetir.
Dignidade e respeito,
qualidades fáceis de enumerar.

Dedico a ti essas palavras, como dedicou Sartre à sua Simone:
"Imoral é aquilo que se pode fazer, quer fazer e não faz."

quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Avenida Liberdade #4

Gritos e mais gritos, bem vindo a minha vizinhança. Aqui na Avenida Liberdade tudo tem um quê de arrependimento. Viúvos choram a traição, presos amontoados vêem as lágrimas nos olhos de filhos, esposas e mães. As meninas do cabaré, entre um cliente e outro, reclamam de suas condições.

O tempo todo, minha vizinha, dona Celina, grita com o esposo. Bem na porta da frente, dá pra ouvir os copos quebrando na parede. Todo dia, ou quase todo, é a mesma coisa, por volta das duas da madrugada, seu Geraldo bate na porta. Ele está tão bêbado que não consegue abri-la, algumas vezes, quando preciso acordar cedo, eu o encontro deitado no corredor.

Lembro que conheci os dois há uns três anos, quando eles se mudaram pra cá. Fiquei sabendo depois que dona Celina tinha descoberto uma das amantes do marido, e o obrigou a mudar. O que ela não sabia, ou melhor, não queria acreditar, era que ele arrumaria outras por aqui. Você deve estar pensando em seu Geraldo como um coroa garboso, cheio de charme. Gorducho, meio careca, com um bigode a la Nietzsche, troca algumas palavras e não faz um plural. Sempre com a mesma calça azul de brim e uma camisa aberta até a metade do peito.

Seu Geraldo era meu camarada de farras até o cabaré fechar, apesar dos seus quase sessenta, só gostava de meninas novinhas, dizia que não importava a “buniteza”, se fosse novinha, e novinha pra ele era tudo com menos de vinte anos, ele queria.

No começo dona Celina não gostava de mim, ela admitiu um dia desses, dizia que eu levava o Docinho dela pro mau caminho da bebida, dos jogos e das mulheres. Até parece, um moleque como eu querendo ensinar sobre putaria para um profissional do negócio.

A verdade é que o coroa gostava de mim porque eu mentia por ele, que mal conseguia falar quando chegávamos das farras. Sempre era uma história diferente, nunca íamos pro cabaré, por exemplo, sempre tinha um baile, ou um sarau nas redondezas. A culpa da bebedeira nunca era dele, era sempre de um amigo meu, do garçom que era gente boa. Acho que a convivência com aqueles dois aprimoraram meu modo de mentir.

Dona Celina me trata, até hoje, como um filho. Cozinha pra mim, passa certinho minhas camisas quando eu tinha uma reunião importante. Acho que é porque os dois filhos dela estão na Avenida Liberdade, João Antônio, o mais velho, o que fez faculdade e que tinha um futuro brilhante, segundo a mãe, no cemitério. João Pedro, o mais novo, mais esperto e mulherengo, segundo o pai, meteu-se com quem não devia e está no Presídio cumprindo doze anos por tráfico e homicídio.

Toda família tem um ritual, seja orar à mesa, seja se reunir nos sábados para um churrasco, até eu que vivo só tenho meu ritual de uísque barato e cigarros na janela, e aquela família não podia ser diferente. O único dia que seu Geraldo nunca bebe é na quarta, porque na quinta, bem cedinho, ele sai com a mulher. Veste-se com calça marrom e camisa abotoada, passa na padaria – sempre compra uma saco grande de bolacha maragogi, uma manteiga, doce de goiaba e um pacote de cigarros – e desce a avenida até a Penitenciária. Vão ver o filho, dona Celina leva umas revistas de mulher pelada e um livro, normalmente é de auto-ajuda, mas pelo menos é alguma coisa.

Na volta, pouco depois do meio-dia, eu os vejo andando de mãos dadas pelas calçadas irregulares da Avenida Liberdade, entrando no cemitério, sempre com flores, ainda não sei ao certo, mas acho que são girassóis. Cerca de meia hora depois eles saem e almoçam num prato-feito aqui em baixo do prédio. É nessas horas que eu tenho orgulho de meus vizinhos. João Antônio morreu há sete ou oito anos e todas as quintas-feiras, desde que eles estão aqui recebeu flores. João Pedro está preso tem uns quatro anos e sempre ganha do pai suas preciosas bolachas maragogi, goiabada e dinheiro de cadeia, cigarros.

Tento pensar que o caso do marido tenha sido apenas a desculpa que dona Celina precisava para ir para mais perto dos filhos. Posso estar enganado, mas ela representa o amor incondicional de mãe, pelo filho morto e pelo filho preso.

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Avenida Liberdade #3

O que é a vida? Seria mais fácil responder: uma coleção de vícios e decepções, e este seria meu lado ultra-romântico, mal-do-século, pessimista e quase psicótico falando. A vida são os pequenos e belos momentos que ela nos proporciona, eu diria: cala-te escritor de livros de auto-ajuda, daqueles bem bregas com fotos de criancinhas loiras de olhos azuis, ou filhotes de cães insuportáveis fazendo coisas estúpidas. Chega uma hora que, definitivamente, a vida é. Ponto. Não tente explicar, não tente entender, não me venha com mil teoremas de velhos gagás e mal amados, também conhecidos como filósofos. A vida é.

É desta forma que minha vida tem sido, pelo menos, uma seqüência irresponsável de atos, momentos e reações. Devo admitir que, hoje, acho a vida uma coisa legal, mas nem sempre foi assim. A vontade que tenho é de dizer como minha infância foi infeliz e sofrida, como as coisas nunca davam certo lá em casa, meu era um bêbado e minha mãe, minha mãe, uma meretriz de lábios pintados e sorriso fácil. Não foi nada assim. Meus pais morreram quando eu tinha uns seis anos e estão enterrados no cemitério do outro lado da rua. Eu fui criado por uma irmã do meu pai e seu marido impotente e rico, estudei em escolas caras, sempre tive tudo que quis.

Minha tia tinha pena de mim, eu acho, porque nunca me disse não, nunca me deu limites, nunca me cobrou nada. Meus colegas de classe, todos riquinhos e metidos a besta, eu falo isso hoje, mas era igual a eles naquela época, pouco me importava se estavam sacaneando o preto, pobre, filho do zelador, apenas por ele ser preto, pobre e filho de zelador.

Não me importa com o que era dado nas aulas, na verdade, todo dia eu matava uma e quando me pegavam era só pedir pra minha tia assinar a advertência. Meu colégio tinha nome de santo, era coordenado por padres, mas todas as meninas eram umas putas. Pelo menos, na época, eu pensava assim. Não era difícil para um ser medíocre, escravo do dinheiro e da popularidade, que nunca precisou de nada e sempre se deu bem com as meninas mais desejadas do colégio dizer isso. Dormi com muita, gostei de poucas e não amei nenhuma. Ao acordar todas pareciam putas de lábios pintados e sorriso fácil.

É nessa hora que você pensa ter descoberto o meu lado mais podre, ledo engano. Eu sou um escroto, você diria aos seus filhos que sou má-companhia e detestaria me ter como genro. Uma mulher diferente por semana, mulher não, um troféu diferente por semana, um punhado de dinheiro na carteira, um carro do emprestado da minha tia, e eu nem tinha idade para dirigir. Eu era um escroto e era um escroto feliz pra caralho.

Talvez o título de inconseqüente, idiota, playboy, caiam bem para tudo aquilo, e eu era mesmo. Mudei é verdade, infelizmente, não foi pra muito melhor, pelo menos é o que vocês vão dizer.

Com dezessete eu passei no vestibular, Direito, fácil, não vou negar que era vagabundo, mas sempre fui inteligente, ou eu assim pensava, e nem um pouco modesto. Era tudo o que eu queria, faculdade pública e mais mulheres. Acho que foi mais ou menos nessa idade que eu li meu primeiro livro. Sim, eu tenho vergonha disso e você não precisa me lembrar. Crime e Castigo, do Dostoievski. Eu li porque uma menina da minha sala, muito bonita por sinal, disse que era seu livro favorito. Foi ai que tudo começou a mudar.

Por dias eu me senti como o Raskolnikóv, depois foi Holden Caulfield, Hamlet e Yorick, pensei em suicídio com o Werther e pactos diabólicos com o Fausto, fui Bentinho e amei a Capitu. Quantas certas manhãs eu não acordei de sonhos intranqüilos e achei que era o Gregor Samsa? Inúmeras. E essa foi a minha culpa. Era tão bom ser ignorante, até tentei voltar atrás e,quem sabe, contentar-me apenas com mulheres para exibir, um carro e ficar bêbado, tenho que admitir que ficar bêbado ainda é uma coisa que eu faço bem.

Saí de direito, fiz letras e jornalismo, queria ser igual àqueles que haviam destruído minha felicidade, mas tinham me dado uma vida. Com 21 arrumei um emprego e mudei para o único lugar que podia ser mais escroto do que eu, Avenida Liberdade, na frente do cemitério, logo depois do presídio.

Pensar é uma coisa escrota, você pensa que sabe como é que funciona, ai, sem querer, você esbarra com um pensamento e nada mais é como era antes, compreender o mundo é uma sacanagem, como aquela que faziam com o preto, pobre, filho de zelador. Hoje tenho inveja dele, não pelo que ele tinha, mas pelo que ele passou, sem nunca se curvar a babaquice de meus colegas, ou melhor, ex-colegas, há tempo que não vejo um deles, ainda bem, as últimas notícias que eu tive era que um tinha engravidado a namorada de quinze anos e um outro tinha conseguido ser preso por traficar droga. A única coisa que me incomoda sobre aquelas pessoas são as desculpas que devo a algumas daquelas garotas com quem dormi. Nunca dei valor a elas, e ainda hoje, eu acho, não dou. Se desse teria procurado por elas.

Já fui um babaca, um grande de um cínico, um sacana, com os outros. Hoje só sou assim comigo mesmo e com uns ou outros que me lêem. A diferença, a única diferença verdadeira, é que hoje, eu lembro da Letícia, depois de ter cortado os pulsos, havia em seus olhos mil pedidos de desculpas e uma súplica inexplicável por socorro. Eu só queria ter tido coragem de acompanhá-la.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Avenida Liberdade #2

Lembro da primeira vez que eu vim a Avenida Liberdade. Lembro da tarde chuvosa, das roupas negras, lembro do impacto de enterrar entes queridos, lembro de meus pais. Lembro que ainda era muito novo, hoje posso calcular que tinha seis anos, mas não há definição de tempo quando você bota pra debaixo da terra, sem entender porquê seu pai e sua mãe.

Foi meu primeiro contato com a morte – já tinha visto gente morrer em filmes, mas ali era real. Não podia imaginar que a morte e aquela avenida iriam estar tão presentes em minha vida. Outra daquelas brincadeiras que nossa realidade prega.

Eu caminhei pela primeira vez pela Liberdade aos seis, há vinte anos. Não há um ano que eu não tenha que voltar ali para enterrar alguém importante. Acho que já vi tanto a morte que reconheço seu cheiro, e digo, parece com café forte – recém passado – cedo pela manhã.

“O amor é uma compensação pela morte”, já diria um filósofo alemão. Engraçado pensar assim e através da janela, que só mostra túmulos, só vejo amores passando. Deve ser meu lado ultra-romântico ou é o uísque fazendo seu efeito em plena tarde.

Esta é a hora onde você começa, novamente, a julgar-me insensível. E o sou, mas por motivos simples e claros. Não me venha com essa de bêbado, de escritor frustrado, de mal amado e similares.

Não vou negar minhas bebedeiras, mas já vendi bastante e posso dizer que sei o que é amor verdadeiro. Não a tenho perto de mim, verdade, mas posso imaginá-la deitada ao ver, do outro lado da rua, seu rosto esculpido em estátua de anjo.

Ela partiu dois anos atrás, mas nunca deixou de estar comigo. Vejo que é a hora de deixar o luto e contar minha história.

terça-feira, 1 de janeiro de 2008

fragmentos.perdidos.

//À mais bela das belas,
àquela que não pode ficar triste,
àquela que ao sorrir mostra todas duas estrelas nos olhos.//

Fragmentos Perdidos
(ou porque todas as minhas lágrimas valem teu sorriso)

Encontro você sentada na noite repleta de estrelas, a luz tênue revela lágrimas em teus olhos. Não pergunto o porquê, não me importa saber.
Abaixo o olhar pra cruzar com o teu, lago límpido entre olheiras inconvenientes. Dois pedaços de gente, eu e você.
Você me diz para olhar para o céu e ver as estrelas.
_Mas para que, se elas são apenas nossas lástimas?
_Por que elas brilham no céu? – é tão baixo que quase não posso escutar – e por que brilham nossas lástimas?
_Porque deixam de ser coisas humanas.
No jardim, arranco duas flores. Rosa vermelha, rosa branca. Isso pode não enxugar tuas lágrimas, mas esquentará teu coração.
E te digo, entre olhares cúmplices e o cheiro salgado que bate no píer: “Se pudesse pegar toda sua tristeza pra mim, já o teria feito, só pro seu sorriso me alegrar”.
Não importa o que machuca teu peito, minha amada, procura entre os escombros os fragmentos perdidos daquilo que chamaram de amor.

44.

travessão

Ele não era nada além do normal, um homem comum – ele se odiava. Longas noites de olhos abertos, dias inteiros no seu trabalho medíocre. O salário nunca bastava, as mulheres sempre o deixavam – ele as amava.
Entreva, em noites sem lua, seus segredos às páginas amareladas de um velho caderno. Não era nada de mais, apenas garranchos repletos de nicotina e cheirando uísque barato – ele nunca disse que não.
Páginas inteiras, sem sentido. Páginas rasuradas, verdades cruas, trazendo dor e desespero. Declarava amor, flagrava sua miséria – ele disse, eu te amo.
Duas pedras de gelo derretendo no uísque barato. Outra caneta vazia, páginas cheias. Cigarro queimado. E o cheiro de café – a morte que não tarda ao ser chamada.
Em suas páginas amareladas, deixou uma última frase – Tu és pérola.

Avenida Liberdade #1

Antes de mais nada quero avisar que não estou escrevendo para você gostar de mim. Seria muito fácil dizer de como sou honesto, fiel, como acordo bem humorado, sonho em plantar árvores e fazer um mundo melhor.


Na verdade estou escrevendo para você me odiar. Odiar o modo fácil como eu conto uma mentira, como eu não respeito os sentimentos dos outros, como eu estou pouco me fudendo para as coisas belas da vida. Claro que eu gosto das coisas belas da vida, mas sei que elas não passam de engodos para algum idiota escrever livros de auto-ajuda.

Eu aceitei que o mundo é escroto, que as pessoas não são boas e as histórias, normalmente, não tem um final feliz. Antes que venham me julgar olhem para si mesmos, para suas vidas, suas coleções de vícios. Fiquem com os seus, eu me divirto com os meus.

Gosto de me sentar – por volta do meio-dia – bem de frente para a minha janela, deixar o gelo derreter no uísque barato junto com o calor que sobe do asfalto. Deixo o Sol, refletido nos carros e nos túmulos do cemitério do outro lado da rua, iluminar o rosto. Hoje teve dois enterros pela manhã. São poucos, a julgar que é uma segunda-feira e é no fim de semana que eles nos deixam, ou são tomados de nós. Bela humanidade que se mata por duas notas de vinte, uma carteira de cigarros ou cinco gramas de pó.

É hora de almoço, os trabalhadores estão voltando pra suas casas, o mormaço sufoca os pedestres que tentam cruzar o farol quebrado em frente à Penitenciária. É bater a cinza do cigarro e observar - dar tragos longos do uísque dissolvido em água - a sutil e cínica representação do mundo sobre ele mesmo.

Bem aqui, onde eu me escondo, na mais cínica das ruas, a Avenida Liberdade, que começa numa cadeia e termina num cemitério. Retrato irônico de nossas desavenças, do mundo incoerente que vivemos. Acho que é por isso que não saio desse apartamento quente e minúsculo, onde meus livros têm que ser empilhados e de minha cama tenho uma bela vista do banheiro onde a água escorre do chuveiro deixando o verde musgo colorir a parede de azulejos brancos, um dia eles foram brancos, garanto.

Acontece que a Liberdade vai além do cemitério e da penitenciária, tem uma praça mal cuidada e um velho teatro, quando digo velho é desses quase centenários, que a cada quatro anos um político usa para tentar ganhar votos prometendo sua revitalização. O que sei é que até uns sete meses atrás ali funcionava um Cabaret. A fachada e os móveis estavam meio gastos, e as meninas não eram lá essas coisas, mas tinha boa música e bebida barata.

Não gosto de comentar muito, mas eu amo essa Avenida, amo suas mentiras, amo seu lado cínico. Eu amo a liberdade de estar condenado a viver aqui. De ouvir a vizinha gritar, de saber que duas casas adiante é ponto de tráfico, que na frente da minha janela, onde o gelo derrete e as cinzas são batidas existem dores maiores que as minhas.

*Avenida Liberdade é um lugar fictício. Com pessoas virtuais. Onde minhas mentiras se tornam reais, e a realidade mente.